Domingo, 8 de Janeiro às 00:24
A loba baixou o focinho ao chão, aproximando-a da terra para sorver o
cheiro do rasto daquela presa, que já vinha seguindo de tempos a tempos, sem
contudo a tentar alcançar.
Não havia presa como esta presa, esta era
particular, e especial acima das especiais, e ela seguia-a faz tempo...
Faz
tempo que mantendo apenas a distância necessária para conseguir resistir ao
ímpeto de se lançar no seu encalço, alimentava aquele jogo do gato e do rato,
permitindo que a sua presença fosse notada e temida enquanto prolongaria por
tempo indeterminado a sua sede de caça, de alimento...
Sede esta não
superior ao gozo que lhe dava materializar em sonhos acordados os contornos da
sua presa, de imaginar o gosto do fluido do seu sangue quente que lhe roubaria
das veias, enquanto obteria o privilégio de se deliciar com o manjar das suas
tenras carnes...
O seu odor, ela já conhecia bem, e até o seu relance... A
atracção que estes lhe causavam era inegável e superior a ela própria...
Entre a loba e a presa formara-se uma cumplicidade única, devida a esta
proximidade gerada pelo reconhecimento mútuo, pela noção da existência de perigo
no ar...
Se por um lado a loba mantinha estas incursões solitárias e
regulares ao coração da selva, procurando e actualizando a localização da sua
presa, era esta quem mais se expunha, arriscando consecutivamente a pele de uma
forma insana, ao afastar-se com descuido do rebanho, e ao denunciar-se como que
a dizer estou aqui, para se deliciar com os rebentos mais tenros do coração da
floresta.
Naquele dia, a presa afastara-se mais do que o habitual,
distanciando-se do rebanho e dos seus pastores e cães guia.
A presença desta
nas proximidades, tão intensa e anunciada, fazia tremer as narinas da loba,
enquanto o seu interior se revirava e debatia numa luta...
Contrariando o
instinto da investida, a loba identificou e desenhou mentalmente o trajecto da
sua presa, estacando e permitindo que ela viesse ao seu encontro.
E o
encontro da loba e da presa deu-se inevitavelmente.
O cordeiro que habitara
os seus sonhos materializava-se agora à sua frente, tremendo e vacilando das
pernas, entregue ao seu alcance, mas curiosamente não surpreendido...
Corajosamente a presa enfrentou a loba, sem emitir um único balido,
retribuindo o olhar sedento mas sereno desta, com o mais meigo dos seus olhares,
estabelecendo-se um diálogo em silêncio entre elas...
- Minha loba?
-
Minha presa...
- Porquê eu? Porquê eu e não outro cordeiro?
- Porquê tu?
- Sim, loba... Tens cordeiros mais gordos e mais viçosos no meu rebanho, que
te poderiam prestar melhor sustento do que eu, os quais, com o teu porte e a tua
força, não terias qualquer dificuldade em caçar! Então porquê eu? Eu, que sou
tão pequeno, frágil e raquítico? A minha carne magra não te alimentará...
-
Enganas-te, cordeiro... Não é pela tua carne, ainda que tenra das mais tenras,
que aqui estou, mas sim por essa mesma tua pureza, transparência e fragilidade
quase proibitivas, pelo viço da tua lã virgem que cobre essa tua inocência, e
que brilha aos meus olhos mais que qualquer outro... Porque habitas os meus
sonhos, e constituis a mais doce das tentações que agora está ao meu alcance, e
porque isso faz de ti a minha presa...
- Não percebo o que vês em mim, loba,
mas aceito... - assentiu o cordeiro.
Sustentando o olhar da loba, e já sem
medo, este dobrou-se sobre os joelhos, estendendo o seu tenro pescoço com toda a
humildade e gentileza que conseguiu aplicar...
Sob o poder de um feitiço
maior, a loba deu dois passos seguros, investindo sobre o cordeiro e sem
quaisquer movimento brusco, enterrando as suas presas na sua presa, penetrando e
dilacerando suavemente a sua pele, a sua carne exterior, sentindo o gosto tão
sonhado inflamar as suas papilas, e incendiar as suas entranhas, ao mesmo tempo
que o ar era furado pela bala que a atingiu e a tombou...
Uma dor fina e
agonizante, rapidamente se transformou em dores lancinantes, de um calor forte e
intenso seguido de um formigueiro que a invadiu e se expandiu por todo o seu
corpo, contorcendo-a em espasmos incontroláveis, provocados pelo projéctil de
chumbo que se alojara em seu interior...
Tombadas ao lado uma da outra, suas
respirações eram aceleradas, e seus corações batiam descompassadamente,
latejando num movimento visível à superfície, e seus olhares presos se
mantinham...
- Vai!... - implorava a presa à sua loba que resistisse e
fugisse...
- Irei!... - proferiu esta, reunindo as poucas forças que lhe
restavam para se erguer, não sem antes lançar um último olhar na sua presa que
jamais voltaria a ter, e que um véu de tristeza profunda cobriu e desceu aos
olhos que lhe pediam perdão, para desaparecer logo de seguida no meio da
vegetação...
Não eram mortais seus ferimentos, nem de uma nem de outra, e logo o
cordeiro foi tomado e levado em braços por seu dono e pastor, enquanto a loba
recuperava lentamente as forças e espalhava o formigueiro evaporando-se num
ápice e sem deixar rastos. Mas dentro de si levava o veneno do chumbo que a
invadira e nela ficara alojado, que se iria alastrar lentamente para causar os
efeitos mais devastadores.
Um peso alojado nas suas costas e não provocado
pela bala teria sido o responsável pela lentidão do ataque, tornando-a
susceptível ao perigo, impedindo-a de concretizar até às últimas consequências a
sua investida, e que por outro lado lhe atrasava agora a sua fuga...
Consciente dele e da sua fraqueza, a loba teria antevisto este desfecho, e
ainda assim... entregara-se ao seu destino a qualquer preço.
Mas também esta
loba era especial entre as especiais e não era uma loba vulgar!
Guerreira
entre as guerreiras, conseguiu arrastar-se e pôr-se a salvo para fora da
floresta, regressando à civilização, regressando à sua companheira de sempre, à
sua amiga e mulher, a estalajadeira...
À distância, a loba reconheceu o
cheiro e a silhueta afável da estalajadeira sentada na soleira da porta de
entrada da pousada.
Cambaleando aproximou-se e deixou-se cair a seu lado,
aguardando o conforto das suas festas no pêlo.
À soleira da porta, um pouco
mais elevadas, as duas observavam o movimento na rua mais abaixo, perpetuado
pela passagem constante de veículos a pequena ou a velocidade superior, e pelos
passos acelerados de diversos transeuntes que se cruzavam no passeio sem se
verem ou sequer repararem nelas, concentrados nos seus afazeres e preocupações.
- Pensei que não voltavas… - disse em voz baixa a estalajadeira, afagando
com festas suaves e lentas o lombo da loba.
- Pensei que não voltasse… -
respondeu a loba no seu silêncio.
- Estás ferida! - constatou a mulher após
um curto e breve olhar de relance.
- Vai passar. - disse, estremecendo com o
veneno do chumbo que minava o seu interior e dava sinal de si.
- Não devias
ter voltado… - tornou a estalajadeira.
- Não partiria sem ti! – retorquiu a
Loba.
- A tua missão está cumprida, loba… Um dia vais ter que o fazer, e tu
sabes que já não posso mais te acompanhar…
Levantou os olhos para a sua
companheira, observando a cabeça hedionda da figura negra, demoníaca e alada,
que habitava nas suas costas, e espreitava um pouco acima do seu ombro exercendo
um sorriso trocista e escorrendo baba viscosa pelos cantos da boca e pela língua
bífida e pendente, de garras longas e afiadas, presas ao seu pescoço e ao seu
tronco, envolto nas asas de morcego.
- Está cada vez maior… Não podes fazer
nada? – indagou a loba.
A mulher sorriu tristemente.
- Já me acompanha
desde a barriga da minha mãe. E cresceu de tal forma que já não me consigo
libertar dele... E tu se não te libertares vais ficar como eu… Deves partir o
quanto antes…
A loba sabia bem o que a esperava. Por muito familiarizada que
com ele estivesse, o peso que curvava e dobrava a amiga estalajadeira
causava-lhe nojo e repugnância!… O mesmo peso que ela própria começava a sentir,
também a sua criatura demoníaca começava a tomar forma e a despontar das suas
costas. Sorte dela, que esta também seria envenenada pelo chumbo da bala que
atingira a loba e que a iria consumir…
Algum dia recuperaria disso?
Cansada, a loba recolheu-se ao seu ninho no interior da estalagem.
A
mulher seguiu-a, iniciando o retorno à sua rotina diária.
- E afinal… que
tinha essa presa, Loba?
Como a loba nada respondeu voltou a insistir…
-
Que tinha essa presa que a distingue de todas as outras, Loba?
Deitada no
ninho e enroscada em torno de si, a loba ergueu o focinho para responder.
-
A minha presa… A minha presa só tinha o anjo mais belo que já vi em toda a minha
vida, às costas…
Escondeu o focinho entre patas, e adormeceu…
por Loba Cris
mais textos da linha da loba e da estalajadeira:
Lindo! Lindo!
ResponderEliminar