sábado, 14 de janeiro de 2012

A loba e a presa

Domingo, 8 de Janeiro às 00:24




A loba baixou o focinho ao chão, aproximando-a da terra para sorver o cheiro do rasto daquela presa, que já vinha seguindo de tempos a tempos, sem contudo a tentar alcançar. 
Não havia presa como esta presa, esta era particular, e especial acima das especiais, e ela seguia-a faz tempo... 
Faz tempo que mantendo apenas a distância necessária para conseguir resistir ao ímpeto de se lançar no seu encalço, alimentava aquele jogo do gato e do rato, permitindo que a sua presença fosse notada e temida enquanto prolongaria por tempo indeterminado a sua sede de caça, de alimento... 
Sede esta não superior ao gozo que lhe dava materializar em sonhos acordados os contornos da sua presa, de imaginar o gosto do fluido do seu sangue quente que lhe roubaria das veias, enquanto obteria o privilégio de se deliciar com o manjar das suas tenras carnes... 
O seu odor, ela já conhecia bem, e até o seu relance... A atracção que estes lhe causavam era inegável e superior a ela própria... 
Entre a loba e a presa formara-se uma cumplicidade única, devida a esta proximidade gerada pelo reconhecimento mútuo, pela noção da existência de perigo no ar... 
Se por um lado a loba mantinha estas incursões solitárias e regulares ao coração da selva, procurando e actualizando a localização da sua presa, era esta quem mais se expunha, arriscando consecutivamente a pele de uma forma insana, ao afastar-se com descuido do rebanho, e ao denunciar-se como que a dizer estou aqui, para se deliciar com os rebentos mais tenros do coração da floresta. 
Naquele dia, a presa afastara-se mais do que o habitual, distanciando-se do rebanho e dos seus pastores e cães guia. 
A presença desta nas proximidades, tão intensa e anunciada, fazia tremer as narinas da loba, enquanto o seu interior se revirava e debatia numa luta... 
Contrariando o instinto da investida, a loba identificou e desenhou mentalmente o trajecto da sua presa, estacando e permitindo que ela viesse ao seu encontro. 
E o encontro da loba e da presa deu-se inevitavelmente. 
O cordeiro que habitara os seus sonhos materializava-se agora à sua frente, tremendo e vacilando das pernas, entregue ao seu alcance, mas curiosamente não surpreendido... 
Corajosamente a presa enfrentou a loba, sem emitir um único balido, retribuindo o olhar sedento mas sereno desta, com o mais meigo dos seus olhares, estabelecendo-se um diálogo em silêncio entre elas... 
- Minha loba? 
- Minha presa... 
- Porquê eu? Porquê eu e não outro cordeiro? 
- Porquê tu? 
- Sim, loba... Tens cordeiros mais gordos e mais viçosos no meu rebanho, que te poderiam prestar melhor sustento do que eu, os quais, com o teu porte e a tua força, não terias qualquer dificuldade em caçar! Então porquê eu? Eu, que sou tão pequeno, frágil e raquítico? A minha carne magra não te alimentará... 
- Enganas-te, cordeiro... Não é pela tua carne, ainda que tenra das mais tenras, que aqui estou, mas sim por essa mesma tua pureza, transparência e fragilidade quase proibitivas, pelo viço da tua lã virgem que cobre essa tua inocência, e que brilha aos meus olhos mais que qualquer outro... Porque habitas os meus sonhos, e constituis a mais doce das tentações que agora está ao meu alcance, e porque isso faz de ti a minha presa... 
- Não percebo o que vês em mim, loba, mas aceito... - assentiu o cordeiro. 
Sustentando o olhar da loba, e já sem medo, este dobrou-se sobre os joelhos, estendendo o seu tenro pescoço com toda a humildade e gentileza que conseguiu aplicar... 
Sob o poder de um feitiço maior, a loba deu dois passos seguros, investindo sobre o cordeiro e sem quaisquer movimento brusco, enterrando as suas presas na sua presa, penetrando e dilacerando suavemente a sua pele, a sua carne exterior, sentindo o gosto tão sonhado inflamar as suas papilas, e incendiar as suas entranhas, ao mesmo tempo que o ar era furado pela bala que a atingiu e a tombou... 
Uma dor fina e agonizante, rapidamente se transformou em dores lancinantes, de um calor forte e intenso seguido de um formigueiro que a invadiu e se expandiu por todo o seu corpo, contorcendo-a em espasmos incontroláveis, provocados pelo projéctil de chumbo que se alojara em seu interior... 
Tombadas ao lado uma da outra, suas respirações eram aceleradas, e seus corações batiam descompassadamente, latejando num movimento visível à superfície, e seus olhares presos se mantinham... 
- Vai!... - implorava a presa à sua loba que resistisse e fugisse... 
- Irei!... - proferiu esta, reunindo as poucas forças que lhe restavam para se erguer, não sem antes lançar um último olhar na sua presa que jamais voltaria a ter, e que um véu de tristeza profunda cobriu e desceu aos olhos que lhe pediam perdão, para desaparecer logo de seguida no meio da vegetação... 


Não eram mortais seus ferimentos, nem de uma nem de outra, e logo o cordeiro foi tomado e levado em braços por seu dono e pastor, enquanto a loba recuperava lentamente as forças e espalhava o formigueiro evaporando-se num ápice e sem deixar rastos. Mas dentro de si levava o veneno do chumbo que a invadira e nela ficara alojado, que se iria alastrar lentamente para causar os efeitos mais devastadores. 
Um peso alojado nas suas costas e não provocado pela bala teria sido o responsável pela lentidão do ataque, tornando-a susceptível ao perigo, impedindo-a de concretizar até às últimas consequências a sua investida, e que por outro lado lhe atrasava agora a sua fuga... 
Consciente dele e da sua fraqueza, a loba teria antevisto este desfecho, e ainda assim... entregara-se ao seu destino a qualquer preço. 
Mas também esta loba era especial entre as especiais e não era uma loba vulgar! 
Guerreira entre as guerreiras, conseguiu arrastar-se e pôr-se a salvo para fora da floresta, regressando à civilização, regressando à sua companheira de sempre, à sua amiga e mulher, a estalajadeira... 
À distância, a loba reconheceu o cheiro e a silhueta afável da estalajadeira sentada na soleira da porta de entrada da pousada. 
Cambaleando aproximou-se e deixou-se cair a seu lado, aguardando o conforto das suas festas no pêlo. 
À soleira da porta, um pouco mais elevadas, as duas observavam o movimento na rua mais abaixo, perpetuado pela passagem constante de veículos a pequena ou a velocidade superior, e pelos passos acelerados de diversos transeuntes que se cruzavam no passeio sem se verem ou sequer repararem nelas, concentrados nos seus afazeres e preocupações. 
- Pensei que não voltavas… - disse em voz baixa a estalajadeira, afagando com festas suaves e lentas o lombo da loba. 
- Pensei que não voltasse… - respondeu a loba no seu silêncio. 
- Estás ferida! - constatou a mulher após um curto e breve olhar de relance. 
- Vai passar. - disse, estremecendo com o veneno do chumbo que minava o seu interior e dava sinal de si. 
- Não devias ter voltado… - tornou a estalajadeira. 
- Não partiria sem ti! – retorquiu a Loba. 
- A tua missão está cumprida, loba… Um dia vais ter que o fazer, e tu sabes que já não posso mais te acompanhar… 
Levantou os olhos para a sua companheira, observando a cabeça hedionda da figura negra, demoníaca e alada, que habitava nas suas costas, e espreitava um pouco acima do seu ombro exercendo um sorriso trocista e escorrendo baba viscosa pelos cantos da boca e pela língua bífida e pendente, de garras longas e afiadas, presas ao seu pescoço e ao seu tronco, envolto nas asas de morcego. 
- Está cada vez maior… Não podes fazer nada? – indagou a loba. 
A mulher sorriu tristemente. 
- Já me acompanha desde a barriga da minha mãe. E cresceu de tal forma que já não me consigo libertar dele... E tu se não te libertares vais ficar como eu… Deves partir o quanto antes… 
A loba sabia bem o que a esperava. Por muito familiarizada que com ele estivesse, o peso que curvava e dobrava a amiga estalajadeira causava-lhe nojo e repugnância!… O mesmo peso que ela própria começava a sentir, também a sua criatura demoníaca começava a tomar forma e a despontar das suas costas. Sorte dela, que esta também seria envenenada pelo chumbo da bala que atingira a loba e que a iria consumir… 
Algum dia recuperaria disso? 
Cansada, a loba recolheu-se ao seu ninho no interior da estalagem. 
A mulher seguiu-a, iniciando o retorno à sua rotina diária. 
- E afinal… que tinha essa presa, Loba? 
Como a loba nada respondeu voltou a insistir… 
- Que tinha essa presa que a distingue de todas as outras, Loba? 
Deitada no ninho e enroscada em torno de si, a loba ergueu o focinho para responder. 
- A minha presa… A minha presa só tinha o anjo mais belo que já vi em toda a minha vida, às costas… 
Escondeu o focinho entre patas, e adormeceu… 




por Loba Cris 

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