sábado, 10 de dezembro de 2011

Retrato de um beijo

Sábado, 10 Dezembro 2011 às 01:27






Cedendo ao desafio de contar o primeiro beijo eis que me deparo com uma tarefa mais difícil do que imaginava, pois se a uns, falha a memória, a mim cabe-me a dificuldade em decidir por qual dos beijos aqui descrever, uma vez que beijos há que se vivem e sentem como se do primeiro se tratassem. 
E que bem sabe o primeiro beijo... 
Assim sendo, acabei por remexer no baú das memórias e fui buscar o primeiro, o mais precoce, o mais remoto de todos, e com registo a assinalar, ainda que embaraçoso. 
Digo digno de registo como o primeiro, se considerarmos que brincar aos médicos com os primos não conta, ou será que conta? 

Tinha eu então 6 anos, e encontrava-me na minha primeira classe da escola primária. 

Naquele ano, Joca era o miúdo mais popular da sala de aulas, e porque não dizê-lo, de todo o 1º ano. 
Era o mais forte, o mais bonito e também o mais carismático, seguido pelos rapazes para todo o lado, sempre com brincadeiras que divertiam toda a canalhada, e todas as meninas suspiravam por ele. 
Todas, incluindo eu, naturalmente. 

Um belo dia caí na asneira de confessar às minhas amigas a minha secreta paixão. 
Estávamos no recreio, e terei feito a minha revelação no meio de uma conversa, em que o tema era o Joca, e em jeito de cumplicidade. 
- A sério? - perguntaram-me elas - Gostas mesmo, mesmo, mesmo do Joca? Juras? 
- Sim, juro. Gosto dele por amor. 
Nessa altura as minhas amigas ter-se-ão olhado nos olhos umas das outras e desatado à gargalhada. 
O que consegui, em vez do apoio esperado, foi uma vaia de todo o tamanho. 
De um momento para o outro vejo-me cercada por todas as meninas e mais alguns curiosos que se juntaram à cena, formando uma roda em minha volta, girando ao som da cantiga: 
- A Tininha gosta do Joca, na, na, na-na, na... A Tininha gosta do Joca, na, na, na-na, na... 
Recordo-me de tentar fugir, tapando a cara com as mãos, sendo perseguida pela miudagem toda que se foi juntando, tendo sido apanhada e cercada nas traseiras da escola. 
Ali fiquei, envergonhada e de cara fixa no chão, com as mãos atrás das costas, encostada a uma parede de um pavilhão pré-fabricado, enquanto o resto dos miúdos me vaiavam, perante a cara de diversão das minhas amigas, que observavam a cena de um canto, ligeiramente afastadas. 
Nisto aproximou-se o grupo do Joca, liderado por ele, que perguntava "- O que é que se passa aqui?" com ar reprovador de quem ninguém lhe conta nada... 
Rindo-se muito as meninas cercaram-no e uma das minhas amigas terá chegado ao pé dele, juntando as mãos ao ouvido para lhe contar um segredo, que já não era segredo algum. 
Fiquei para morrer, com as faces da cor da saia encarnada que despontava por debaixo da minha bata de um branco imaculado, com o meu nome bordado sobre um pequeno bolso superior, flamejando em chamas, parecendo que iam soltar labaredas. 
Estarrecida e muda, ali fiquei enquanto ele se aproximou, cara a cara, com o sobrolho franzido e um ar muito zangado, e os punhos cerrados à cintura, quase parecendo que ia começar a bater o pé ritmadamente no chão. 
- Então e tu não dizes nada ao teu futuro marido? - interrogou-me ele com um ar muito sério. 
Senti que o chão me fugia, e já não sabia onde me meter com tanta vergonha, enquanto à nossa volta a miudagem se ria às bandeiras despegadas. 
- Não se riam! - dizia ele - Esta aqui é a minha futura mulher! Vamos casar e ter muitos meninos! 
Foi a paródia total. Palavra que ele dissesse e a canalhada desfazia-se toda... Já havia quem chorasse de tanto rir... 
E eu só queria um buraquinho para desaparecer... 
Até que no meio da confusão, Joca estacou de repente enquanto coçava a cabeça. 
- Esperem lá! Ó mulher? Mas eu, para casar contigo... tenho que te dar um beijo, ou não tenho? Senão não há casamento!... 
Palavra mágica que foi dita! Calou-se tudo! 
De boca aberta e olhos bem abertos, tal como eu, ficaram suspensos enquanto Joca se chegou novamente a mim, desta feita com um dedo levantado que quase encostou ao meu nariz, gesticulando enquanto com um ar muito decidido me intimou: 
- Mas tens que fechar os olhos! Não podes ver! Senão não te dou o beijo!... 
Sem acreditar no que me estava a acontecer, e perante o espanto das minhas amigas e do resto da miudagem, abanei repetidamente a cabeça num jeito de concordância, e fechei os olhos com muita, muita força. 
Senti que ele se chegou para trás, talvez para ganhar lanço. 
- Vai ser agora! Não abras os olhos! - ordenava ele - Vou contar até três! Está quieta! Um... dois... três!!! 
O que se seguiu foi algo completamente desastroso, iniciado por alguém que se lançou tipo super-homem a levantar voo, ensaiando passos de corrida para no fim do lanço me despegar algo que ainda hoje estou para perceber como é que não acabou em dentes partidos ou cabeças rachadas, ou quando muito caras pisadas... 
Mas foi um beijo, o que recebi, um beijo tipo... bate-chapas, que não me recordo se envolveu baba e ranho, sei que língua não teve, até porque isso seria impensável naquelas idades. Ainda que quase trágico, foi o meu primeiro beijo, com o meu primeiro "amor", e que ali, naquele momento, me transportou para muitos metros, e porque não, quilómetros acima do chão, suspensa num instante em que tudo em volta desapareceu ou deixou de ter importância. 
Se uns riam e batiam palmas, e outros gritavam "- Que nooooojo!!!", outros como as minhas amigas permaneciam com o queixo caído sem meios de o segurar, enquanto cochichavam baixinho entre eles. 
A partir desse momento as atenções voltaram-se todas para o Joca, que havia se tornado numa espécie de herói. 
Rodeado pelos outros miúdos, afastou-se, e aos poucos todos dispersaram. 
E eu ali fiquei e permaneci quase imóvel durante o resto do recreio, encostada à parede pré-fabricada, torcendo a bata entre os dedos quase a rasgando, e teimando em não levantar os olhos do chão, enquanto com a ponta dos pés fazia desenhos no chão de areia batida. 
Volta e meia o grupinho do Joca acercava-se de mim, fartando-se de rirem com as saídas dele. 
- Estão a ver? Aquela é a minha mulher! Casámos hoje! 
Ou então... 
- Então mulher?! Já fizeste o comer? - (precoce o menino, não? ) 
Ali esperei que tocasse para dentro e ali me mantive enquanto não entravam todos, o que não evitou a risota geral quando depois entrei eu na sala... 
Não houve mais beijos, pelo menos não com o meu Joca!... Ainda assim fiquei esse ano conhecida como a namorada dele, e a minha paixão ainda se manteve viva por tempo indeterminado, mas lá acabou por passar. 

Já as minhas amigas, deixaram de me falar durante uns tempos... 
Mas, e aliás como tudo na vida, também isso passou... 




Assim foi o meu primeiro beijo... 

por Loba Cris

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