Segunda, 5 Dezembro 2011 às 01:57
Cris e Marta eram amigas do peito desde os tempos da
adolescência.
No início cruzavam-se pontualmente durante as aulas, ou quando
regressavam a pé da escola ao final da tarde, seguindo contudo por passeios
diferentes, e trocando apenas olhares e sinais de reconhecimento, sem nunca
terem entabulado qualquer tipo de conversa.
Um dia descobriram casualmente
que moravam à distância uma da outra de apenas dois quarteirões, e desde então
nunca mais se separaram.
Nesses tempos Marta tinha o hábito de se levantar
bem cedinho todos os domingos, saindo de casa para escapar um pouco ao seu
ambiente duro e pesado, protagonizado pela mão tirana de um pai violento,
endurecido pelo peso da viuvez e de ter de criar e educar oito filhos sozinho.
Marta escapulia-se, indo bater à porta de casa da Cris, para se enfiarem as
duas na cama, onde ficavam a dormir abraçadas e enroscadinhas até sensivelmente
meio da manhã. Sob o aconchego dos lençóis e o calor proporcionado por esta
proximidade, transmitiam energias positivas uma à outra, sentindo-se donas de um
mundo suspenso, capazes de enfrentar qualquer desafio que as esperasse lá fora.
Depois levantavam-se para tomarem um pequeno-almoço com os pastéis
deliciosos que Marta trazia sempre da pastelaria que ficava no caminho.
Já
em pleno Verão o calor não convidava a ficarem na cama. Nessa altura calçavam
sapatilhas, vestiam uns fatos de treino e saiam cedo de casa para irem correr
para a Quinta da Conceição, um refúgio mágico arborizado à margem do rio Leça,
com vista para o Porto Leixões.
A Quinta da Conceição fora um espaço que
outrora albergara as instalações do Convento de Nossa Senhora da Conceição, hoje
convertido em parque municipal. Espaço esse que mais parecia um místico
labirinto, repleto de trilhos que serpenteavam por entre as árvores, e os
jardins repletos de lagos e chafarizes, ornamentados por portais de estilo
manuelino, passando pela capela de São Francisco e pelo antigo claustro do
convento, não esquecendo dos espaços de lazer como os campos de ténis e de
minigolfe e até mesmo a piscina municipal.
Era portanto o espaço eleito para
irem correr ao domingo, para ficarem em forma diziam elas…Escusado será dizer
que na volta, no regresso a casa, a paragem obrigatória era na pastelaria,
aquela que ficava no caminho, para aí se empanturrarem com deliciosos pastéis.
Os anos passaram-se, mas Cris e Marta não davam um passo, uma sem a
outra, nem mesmo quando se casaram, constituíram famílias, ou seguiram suas
vidas. Continuaram sempre muito próximas, até mesmo morando a dois quarteirões
uma da outra.
Todavia a pastelaria tinha sido substituída por uma cafetaria,
gerida agora por Cris e seu companheiro.
E as manhãs de domingo foram
substituídas pelos fins de tarde das sextas, passados agora na cafetaria de
Cris: O Nosso Cantinho.
Fascinada por filmes americanos, Cris tentou
reproduzir um pouco da sua atmosfera na decoração da cafetaria. Para tal Cris
teria adquirido uma "Jukebox" através do Amazon, uma vez que não são
comercializadas em Portugal, juntamente com um catálogo de músicas dos anos 70 e
anos 80, bastante diversificado com temas que iam desde os clássicos “slows” ao
pop-rock, heavy metal, enfim uma vasta colectânea de músicas que ninguém esquece
e que tanto agradava a clientela mais assídua.
As duas extravasavam todos os
finais de semana, tagarelando sobre o dia-a-dia, partilhando coscuvilhices,
rindo das suas pequenas desgraças, e eventualmente dançando ao som da música
escolhida para o momento, danças essas que, escusado será dizer, constituíam a
delícia dos clientes masculinos, dada a sensualidade e o envolvimento que lhes
aplicavam.
Mas ultimamente Marta já não aparecia tanto, ligava sempre com uma
desculpa de última hora, justificando-se com uma constipação do Diogo, o bebé de
Marta com 15 meses.
Cris preocupava-se com ela.
No fundo sabia, que os
ciúmes doentios de Daniel, o marido de Marta, e a sua vigilância obsessiva,
estariam por detrás das ausências dela.
Mas Marta fechava-se cada vez mais.
Lentamente foi alterando os seus hábitos diários, principalmente desde que o
pequeno Diogo nasceu, dividindo-se entre o trabalho de mãe e esposa, e o seu
emprego como escriturária que com significativa dificuldade ia mantendo, devido
aos acessos ciumentos de Daniel.
Isolando-se cada vez mais, Marta
esquivava-se sempre, ou respondia de forma evasiva sempre que questionada por
Cris sobre Daniel.
Cris conhecia bem esses acessos. Já tinha assistido a
algumas discussões entre os dois.
Daniel não era só possessivo. Ele dominava
Marta, e sufocava-a, e controlava-lhe cada passo, criando-lhe sentimentos de
culpa até pela companhia da própria sombra. Motorista de transportes
internacionais, Marta só respirava quando ele estava em viagem, algo que já não
ocorria há algum tempo, uma vez que Daniel tinha sido recentemente suspenso por
ter apanhado uma multa por condução com excesso de álcool, em pleno serviço.
Cris desconhecia que naquele dia Marta tinha tido uma conversa com o seu
patrão, após mais uma das cenas de Daniel que teria invadido o escritório para o
descompor com acusações de assédio da sua mulher, anuindo que para bem de todos
seria melhor ela deixar o emprego.
Marta regressou a casa lavada em
lágrimas.
O desespero e o desalento que sentia, sem saber o que seria da
vida deles daí para a frente, conseguiam ser superiores ao medo do que a
esperaria em casa. Ainda deambulou um pouco pelas ruas, respirando fundo e
ganhando coragem para enfrentar Daniel.
Entrou em casa e foi encontra-lo na
sala de estar, andando nervosamente de um lado para o outro, na televisão
passava o Porto-Benfica em directo, mas não seria o futebol a causa maior de
tanto nervosismo.
Aproximou-se para lhe dar um beijo e ia perguntar “-
Porquê que me fizeste isto?” mas calou-se e exclamou apenas um “-Tresandas a
álcool!”. A resposta que obteve terá envolvido termos como “vaca” e “reles
prostituta”. Preocupada com o bem-estar de Diogo, ter-se-á encaminhado para o
quarto do filho, seguida por Daniel.
Marta entreolhou-se quando ouviu bater
a porta do quarto atrás de si…
(…)
Em casa, sentada à mesa, de
caneta e calculadora à mão, completamente atolada e rodeada por papéis como
extractos bancários e facturas de contas para pagar, Cris não parava de esfregar
a cabeça.
Na mão segurava a carta, lida e mais do que relida, com a ordem de
tribunal para execução da penhora referente ao seu estabelecimento. Amanhã
mesmo, pelas 8h00, Cris receberá a visita de um oficial de justiça nomeado
executor da penhora, acompanhado por um avaliador, e todos os bens como
equipamentos e mobiliário, incluindo a sua “jukebox”, irão ser apreendidos e
retirados da sua cafetaria, obrigando ao encerramento das portas do Nosso
Cantinho.
Por mais que puxasse pela cabeça, Cris não conseguia entender como
é que de um momento para o outro viu as suas contas congeladas, incluindo as
suas contas pessoais e as comuns com o seu companheiro, até porque o negócio
corria razoavelmente bem, o movimento da cafetaria encontrava-se precisamente no
seu apogeu, e até a inspecção da ASAE decorrida esse ano lhes tinha sido
favorável.
Cris desde sempre confiara a gestão financeira da cafetaria a
Berto, o seu companheiro. Professor de matemática, contas era com ele assim como
a gestão do pessoal, enquanto com ela ficava a logística e toda a restante
organização e atendimento ao público. Como funcionário público, em conjunto
sempre tiveram relativa facilidade na obtenção de empréstimos, apesar de o nome
dele não constar na sociedade por opção pessoal.
Quando Cris foi apanhada de
surpresa com o endividamento, confrontara Berto, mas em vez de respostas teria
obtido acusações, relativas à despreocupação e desinteresse dela e ao não
envolvimento dela nas contas da cafetaria.
Mas naquele momento não era a
ordem do tribunal que a deixara atónita e sem reacção, com a sensação de o chão
lhe fugir e das paredes da sala não só girarem em sua volta, mas também se
aproximarem, fechando em círculo até lhe faltar o ar.
Enquanto Berto tomava
um banho de chuveiro, Cris tinha estado a utilizar o portátil pessoal do
companheiro, para consultar toda a contabilidade de empresa, relações de bens e
extractos bancários, etc. O que ela não contava foi ter apanhado acidentalmente
uma página de um banco online, cuja sessão não teria sido terminada,
permitindo-lhe o acesso a uma conta bancária que desconhecia por completo. Nem
tão pouco com o assombroso número que constituía o saldo da mesma, de tal ordem
gigantesco que bastaria uma parte mínima para pagar as suas dívidas e ainda lhe
sobrar um fôlego.
Em estado de choque e completamente em transe, Cris
concentrou-se em prestar atenção ao barulho da água a correr no chuveiro
enquanto escrutinava o movimento daquela conta, descobrindo que todos os
montantes depositados foram efectuados em dinheiro.
Por outro lado encontrou
o registo de transferências regulares de valores significativos para outra
conta, conta essa em nome de, imagine-se, da empregada que Cris havia despedido
há um ano atrás, depois de a ter apanhado com Berto em pleno envolvimento
sexual, e uma vez que era dele que Cris precisava e não o podia despedir a ele…
Aliás, estas “escapadinhas” de Berto já eram habituais, e se numa fase
inicial a magoaram e revoltaram, com o tempo tornaram-na fria e indiferente, uma
vez que precisava dele e ele até servia bem o propósito que lhe era destinado, o
de lhe saciar o corpo quando pretendia e ainda a apoiar e dar o conforto e
segurança que precisava, pelo menos até conseguir alcançar a almejada
independência financeira tão sonhada.
Num acto irreflectido, seleccionou a
opção de introduzir uma nova transferência, e na conta do destinatário preencheu
o número da conta da sua falecida mãe, que por sinal ainda se mantinha aberta e
da qual era titular, e também a sua única conta não congelada.
De olhos
fechados e sem conseguir parar de tremer, Cris rezava para que o telemóvel para
onde seria enviado o código de validação da transferência, fosse o que estava
também pousado na mesa, junto com os restantes objectos pessoais de Berto,
quando o sinal de mensagem se fez ouvir.
Nisto a campainha tocou, fazendo-a
saltar quando ainda tentava perceber se Berto teria ou não ouvido o sinal
anterior.
Cris abriu a porta, e de olhos esbugalhados levou a mão à boca
e mal teve tempo de conter o grito que emitiu ao deparar com a figura e o estado
de Marta… do outro lado da soleira da porta…
por Loba Cris
... e a continuação fica entregue a http://pt.netlog.com/smeagola, a parceira desta ideia que aqui
pretendemos que ainda vá dar muito pano para mangas... eheheh
Espero que
gostem
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