quinta-feira, 19 de abril de 2012

O principezinho (versão da Loba)

Segunda, 16 de Abril às 15:35

Hoje quero deixar-vos uma versão minha, muito pessoal, da minha passagem preferida da história de " O Principezinho" de Saint-Exupèry.

(ver aqui o excerto original da passagem da raposa)

(ou a passagem da rosa...)


O Principezinho e a Loba
"Cativa-me..."





E foi então que apareceu a loba: 
- Bom dia! - disse a loba. 
- Bom dia! - respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada. 
- Eu estou aqui... -  disse a voz suave, debaixo da macieira... 
- Quem és tu? - perguntou o principezinho - Tu és bem bonita... 
- Sou uma loba... -  disse a loba. 
- Vem brincar comigo! - propôs o principezinho. Estou tão triste... 
- Eu não posso brincar contigo - disse a loba. Ainda não me cativaste. 
- Ah! Desculpa... - disse o principezinho. 
Após uma reflexão, acrescentou: 
- Que quer dizer "cativar"? 
- Vê-se logo que não és deste mundo... - disse a loba - Que procuras? 
- Procuro a paz - disse o principezinho - Procuro os sonhos... Esqueci-me de como se encontram... Que quer dizer "cativar"? 
- Os sonhos - disse a loba - são muito difíceis de se alcançar. Tão difíceis que desistimos deles... E com o passar do tempos esquecemos-nos da sua importância... Esquecemo-nos até da sua existência, bem como das coisas boas da vida e como ser feliz. É a felicidade que procuras? 
- Não... - disse o principezinho - Não seria pedir muito, mas já não sei como a procurar. Assm sendo procuro amigos. Se encontrar amigos será um bom caminho para ser feliz não achas? Que quer dizer "cativar"? 
- É uma coisa muito esquecida - disse a loba - Significa "criar laços..."
- Criar laços? 
- Exatamente - disse a loba - Tu não és para mim senão um jovem e belo príncipe inteiramente igual a mil outros príncipes. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo aos teus olhos de uma loba igual a mil outras lobas, ainda que bela. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo... 
- Começo a compreender... - disse o principezinho - Existe uma flor... eu creio que ela me cativou... há muito muito tempo atrás...
- É possível - disse a loba - Vê-se tanta coisa na Terra... 
- Oh! Não foi na Terra - disse o principezinho, foi lá em cima num planeta bem acima da Lua, ela levou-me às estrelas, e depois arremessou-me de lá dos céus -  disse tristemente o principezinho.
A loba pareceu intrigada: 
- Arremessou-te lá de cima? Como pode uma simples flor ter poder para tal?
- Não era uma simples flor, era a minha rosa. 
Ainda intrigada, pois não conceberia tal poder numa rosa, a loba escutou-o atentamente.
- Sempre houveram flores no meu planeta, flores simples e bonitas que não ocupavam lugar nem incomodavam ninguém. Mas um dia um grão novo foi trazido não sei de onde, e o que inicialmente me parecia um arbusto depressa cresceu e se transformou num enorme botão.  E eu assisti ao seu desabrochar. E ela revelou-se a mim em todo o seu explendor. E a sua beleza era tão frágil e tão comovente, que cedi de imediato ao seu apêlo aos meus cuidados.
- Isso parece-me lindo! - comentou a loba - E que aconteceu?
- Bem... A minha rosa não era nada modesta e era muito vaidosa, mórbidamente vaidosa... Eu percebi isso mas redobrava-me em atenções... Fazia tudo quanto ela me pedia, mesmo quando a apanhava em pequenas mentiras, ela reforçava a sua fragilidade e necessidade dos meus carinhos, infligindo-me remorsos por não cuidar dela como ela pedia... E quanto mais humilhada se sentia mais culpas me imputava.
A loba ouvia-o em silêncio, sem emitir um som.
- Assim - disse o principezinho - apesar da boa vontade do meu amor, acabei por começar a duvidar dela. Tomei a sério palavras sem importância, e tornei-me muito muito infeliz. Não a devia ter escutado. Não se devem escutar as flores. Basta olhá-las e aspirar o seu perfume. A minha embalsamava o meu planeta, mas eu não me contentava com isso. E em troca apenas recebi os seus espinhos, que ainda aqui estão cravados.  Não soube compreender coisa alguma, deveria tê-la julgado pelos seus actos, não pelas palavras. Devia ter-lhe adivinhado a ternura por debaixo dos seus pobres e desprezíveis ardis. Mas eu era jovem demais para saber amar... e entreguei o meu amor a quem o não soube cuidar.
Um silêncio instalou-se.
A loba reflectia.
O príncipezinho entregava-se à melancolia.
Até que a loba se pronunciou.
- Não lamentes o tempo que dedicaste à tua rosa. Foi esse tempo que lhe dedicaste que a tornou importante para ti. Esse tempo fez dela única no mundo. Única para ti, e nada mais importa. Porque se fizeste o que o teu coração mandou, só tens que te regojizar por isso, pois tiveste a coragem que poucos teriam. E a dedicação que lhe deste, os cuidados que lhe entregaste, fizeram dela especial, e fizeram de ti especial para ela, ainda que ela o não reconheça e não o tenha tão pouco valorizado. Esquece o mal que ela te terá tratado, e guarda só os momentos bons, retêm essa imagem, que fez de ti grande, e entende tudo o resto como algo que faz parte do teu crescimento... E verás que as marcas dos espinhos que ela deixou acabarão por desaparecer...
- Eu já estou a ultrapassar... Por isso aqui estou... Fechei o meu planeta mas não deixo de procurar os sonhos... Gostava de voltar a acreditar neles... E as marcas fundas que a minha rosa me deixou... Quem me dera acreditar um dia irão desaparecer... - comentou o principezinho enquanto olhava o horizonte.
- Tenho uma ideia. - disse a loba após uma reflexão.
- Então? - indagou o principezinho.
- Nada é perfeito - suspirou a loba. 
Mas a loba voltou à sua idéia. 
- Sabes? A minha vida é monótona e simultâneamente dura. Eu caço sonhos e os homens caçam-me a mim. Todos os sonhos se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu estou cansada. Cansada de perseguir sonhos que já não acredito. Cansada de ser perseguida e atingida desde que fui posta ao mundo. Cansada de pagar preços elevados por tudo isso. E quando penso que estou perto de ver a luz que tanto busco, os homens na forma da vida encarregam-se de me caçar, apanhar e torturar, trazendo-me à prisão da minha realidade. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Diferente dos outros passos que me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Passarei a amar coisas que nunca amei e ainda mais todas as que já amava, porque todas elas me farão lembrar de ti!, Então será maravilhoso quando me tiveres cativado.  
A loba calou-se e considerou por muito tempo o príncipe: 
- Por favor... cativa-me! disse ela. 
- Eu até gostava, mas não sei o que preciso fazer... - perguntou o principezinho. 
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto... 
- Só isso? - perguntou novamente o principezinho.
 - Claro que não! - disse a loba - Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos. Se conseguires ver-me com o coração, e olhares mais além, em troca eu descobrirei a chave do teu mundo fechado, e amarei a tua essência, e permitirei que me catives. E sabes? É preciso também que se criem rituais.
- Rituais? O que são rituais? - perguntou o principezinho,
- É uma coisa muito esquecida também - disse a loba. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. É o que faz com que eu me deite à noite, a pensar em ti, e feche os olhos desejando sonhar contigo. E meu primeiro pensamento do dia, de manhãsinha, mal abra os olhos, será só teu. Nessa altura saberei que me cativaste. E desde a hora que me levantar começarei a ser feliz. E quanto mais a hora de estar próxima de ti for chegando, mais eu me sentirei feliz. E estarei inquieta e agitada até à hora de poder estar contigo, e assim descobrirei o verdadeiro sabor da felicidade, sabendo que estarás lá por mim, e eu por ti e só por ti! E o meu coração estará preparado para a hora de te ter. E não importará a hora de te ver partir, porque possuiremos um ritual, e graças a esse ritual o meu amor por ti crescerá de dia para dia, e na tua ausência tudo me lembrará de ti, desde a gota do orvalho  numa flor, à brisa que corre pelos campos de trigo, e a saudade será apaziguada porque me cativaste e para sempre te pertencerei. E um dia que partas de vez, ficarei negra como à noite, e chorarei noites e noites a fio, e uivarei à lua onde tu estiveres, como prova dos meus sentimentos, mas dentro de mim continuarei a ser feliz, porque um dia me cativaste... E quando cativamos alguém, ficamos a pertencer-nos para sempre e passamos a ser responsáveis por essa pessoa, ainda que distantes e ausentes... 

Então no dia seguinte o principezinho voltou, e no outro, e no outro, e no outro...

E o principezinho cativou a loba...